segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Bénédictine

O ímpeto de crescer e viver intensamente foi tão forte em mim
Que não consegui resistir a ele.
Enfrentei meus sentimentos.
A vida não é racional; é louca e cheia de mágoa.
Mas não quero viver comigo mesma.
Quero paixão, prazer, barulho, bebedeira, e todo o mal.
Quero ouvir música rouca, ver rostos, roçar em corpos,
Beber um Bénédictine ardente.
Quero conhecer pessoas perversas, ser íntimas delas.
Quero morder a vida, e ser despedaçada por ela.
Eu estava esperando.
Esta é a hora da expansão, do viver verdadeiro.
Todo o resto foi uma preparação.
A verdade é que sou inconstante,
Com estímulos sensuais em muitas direções.
Fiquei docemente adormecida por alguns séculos,
E entrei em erupção sem avisar.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Bilhetes

Alguns escrevem pela arte, pela linguagem, pela literatura. Esses, sim, são os bons. Eu só escrevo para fazer afagos. E porque eu tinha de encontrar um jeito de alongar os braços. E estreitar distâncias. E encontrar os pássaros: há muitas distâncias em mim (e uma enorme timidez). Uns escrevem grandes obras. Eu só escrevo bilhetes para escondê-los, com todo cuidado, embaixo das portas.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Menina invisível



Eu não tenho cabelos vermelhos e o meu vestido não é amarelo. Eu sou só uma menina invisível, deitada na grama invisível que a moça que não sabia desenhar, não desenhou. Aquele é o menino que eu não lhe falei. Ele sempre está preso num único instante; o instante em que o moço que sabia desenhar, o desenhou.

O balão que subia as nuvens, com várias crianças chamando, teve de desviar o caminho, pois não fazia parte desse desenho. O avião que trazia uma faixa, com linda declaração de amor, teve de mudar a rota, pois neste céu azul é que não foi desenhado. O pombo-correio que veio voando de fora da imagem, bateu o bico na borda e caiu. Por isso, o menino está sempre só.

Se as crianças do balão não conseguiram. Se o avião também não conseguiu. Se nem o pombo-correio teve sucesso, como é que eu, uma menina invisível, feita de palavras, poderia chegar até ele? Foi o que passei dias e dias pensando. Então, numa de minhas viagens, ouvi dizer que uma imagem valia mais do que mil palavras. Não tive dúvidas. Abri a oficina invisível, acendi as luzes transparentes e comecei a construir este imenso abraço de palavras. De mil e duas palavras. Para, um dia, entregar a ele.

Alvorada


Quando você se sentir sozinho, pegue o seu lápis e escreva. No degrau de uma escada, à beira de uma janela, no chão do seu quarto. Escreva no ar, com o dedo na água, na parede que separa o olhar vazio do outro. Recolha a lágrima a tempo, antes que ela atravesse o sorriso e vá pingar pelo queixo. E quando a ponta dos dedos estiverem úmidas, pegue as palavras que lhe fizeram companhia e comece a lavar o escuro da noite, tanto, tanto, tanto... até que amanheça.

Sementeira de tulipas


Hoje eu comprei sementes de girassol. Há isso de extraordinário no mundo. Quando alguém se sente só ou com saudade de outrém pode comprar sementes de girassol para vê-lo crescer. Pode até fazer uma sementeira de tulipas. Neste caso, é preciso aguar todos os dias, com a ponta dos dedos, deixando cair uma ou duas gotas, apenas. Já as coisas abrutalhadas, máquinas, tratores ou edifícios, deixo aos outros, cuidarem. Também elas precisam de carícias: não vê o homem pendurado nas vidraças com um pano molhado? Não vê a máquina acarinhando a outra com a lixa? Há muitas formas de cuidar. E, felizmente, o delicado e o bruto na esfera do mundo. Se me ocupo da semente é porque escuto o seu silêncio. O silêncio com que ela abraça, tão brandamente, o seu grãozinho de terra.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Sobre a insônia

Talvez, uma noite de insônia seja a vontade do dia em frustrar todas as expectativas que lhe impuseram durante bilhões de anos: amanhecer. Mas nós não acreditamos, nós achamos que não dormimos ou que perdemos o sono, quando foi o sono que nos perdeu. Se eu não durmo, a noite não sonha.

Sobre as respostas

Algumas frases têm o poder da folha em branco. Se alguma delas acertar você, abandone as suas respostas: é inútil escrever de branco sobre folhas brancas. Minha caneta transparente estourando frases dentro da bolsa. Foi um grande silêncio.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Agora em silêncio

Sabe, acho que ninguém vai entender. Ou, se entender, não vai aprovar. Existe em nossa época um paradigma que diz: enquanto você me der carinho e cuidar de mim, eu vou amar você. Então, eu troco o meu amor por um punhado de carinho e boas ações. Isso a gente aprende desde a infância: se você for um bom menino, eu vou lhe dar um chocolate. Parece que ninguém é amado simplesmente pelo que é, por existir no mundo do jeito que for, mas pelo que faz em troca desse amor. E quando alguém, por alguma razão muito íntima, pára de dar carinho e corre para bem longe de você? A maioria das pessoas aperta um botão de desliga-amor, acionado pelo medo e sentimentos de abandono, e corre em direção aos braços mais quentinhos. E a história se repete: enquanto você fizer coisas por mim ou for assim eu vou amar você e ficar ao seu lado porque eu tenho de me amar em primeiro lugar. Mas que espécie de amor é esse? Na minha opinião, é um amor que não serve nem a si mesmo e nem ao outro.

Eu também tenho medo, dragões aterrorizantes que atacam de quando em quando, mas eu não acredito em nada disso. Quando eu saí de uma importante depressão, eu disse a mim mesma que o mundo no qual eu acreditava haveria de existir em algum lugar do planeta! Haveria de existir! Nem que este lugar fosse apenas dentro de mim... Mesmo que ele não existisse mais em canto algum, se eu, pelo menos, pudesse construi-lo em mim, como um templo das coisas mais bonitas que eu acredito, o mundo seria sim bonito e doce, o mundo seria cheio de amor e eu nunca mais ficaria doente. E, nesse mundo, ninguém precisa trocar amor por coisa alguma porque ele brota sozinho entre os dedos da mão e se alimenta do respirar, do contemplar o céu, do fechar os olhos na ventania e abrir os braços antes da chuva. Nesse mundo, as pessoas nunca se abandonam. Elas nunca vão embora porque a gente não foi um bom menino. Ou porque a gente ficou com os braços tão fraquinhos que não consegue mais abraçar e estar perto. Mesmo quando o outro vai embora, a gente não vai. A gente fica e faz um jardim, um banquinho cheio de almofadas coloridas e pede aos passarinhos não sujarem ali porque aquele é o banquinho do nosso amor, o nosso grande amigo. Para que ele saiba que, em qualquer tempo, em qualquer lugar, daqui a quantos anos, não sei, ele pode simplesmente voltar, sem mais explicações, para olhar o céu de mãos dadas.

No mundo de cá, as relações se dão na superfície. Eu fico sobre uma pedra no rio e, enquanto você estiver na outra, saudável, amoroso e alto-astral, nós nos amamos. Se você afundar, eu não mergulho para te dar a mão, eu pulo para outra pedra e começo outra relação superficial. Mas o que pode ser mais arrebatador nesse mundo do que o encontro entre duas pessoas? Para mim, reside aí todo o mistério da vida, a intenção mais genuína de um abraço. Encontrar alguém para encostar a ponta dos dedos no fundo do rio - é o máximo de encontro que pode existir, não mais que isso, nem mesmo no sexo. Encostar a ponta dos dedos no fundo do rio. E isso não é nada fácil, porque existem os dragões do abandono querendo, a todo instante, abocanhar os nossos braços e o nosso juízo. Mas se eu não atravessar isso agora, a minha arte será uma grande mentira, as minhas histórias de amor serão todas mentiras, o meu livrinho será uma grande mentira porque neles o que impera mais que tudo é a lealdade, feito um Sancho Pança atrás do seu louco Dom Quixote, é a certeza de existir um lugar, em algum canto do mundo, onde a gente é acolhido por um grande amigo. É por isso que eu tenho de ir. E porque eu não quero passar a minha existência pulando de pedra em pedra, tomando atalhos de relações humanas. Eu vou mergulhar com o meu amigo, ainda que eu tenha de ficar em silêncio, a cem metros de distância. Eu e o meu boneco de infância, porque no meu mundo a gente não abandona sequer os bonecos que foram nossos amigos um dia.

Agora em silêncio, tentando ensinar dragões a nadar.

Sobre o estrondo

Hoje,
ao acordar de repente,
descobri que até mesmo os sonhos
só consigo sonhá-los em versos.

E acordei,
não porque a porta bateu
não porque o estrondo abissal
mas porque meu sonho entendeu
que o barulho era um ponto final.